sábado, 26 de setembro de 2015

Família e religião - algumas reflexões


Texto: Luiz Gonzaga Godoi Trigo


As primitivas formações familiares eram coletivas, tribais. Grupos ou clãs vagavam pela natureza em busca de alimentos, água e proteção contra o terror noturno povoado de predadores, contra outros humanos que disputavam seus territórios ou contra as terríveis forças naturais das secas, enchentes ou nevascas em uma terra plena de paisagens hostis aos humanos. 

Ao longo da história formaram-se estruturas sociais mais ou menos estáveis para proteger as crianças e os velhos, as mulheres e os doentes, para garantir direitos sobre propriedade, hierarquia social, para abrigar as crianças e o imaginário dos diversos grupos que se espalhavam e se organizavam pelo planeta. 

 Família nativa norte-americana, século XIX

Os estudos antropológicos mostram diversos tipos de agrupamento familiar ao longo da história, das culturas e civilizações. Há famílias monogâmicas, poligâmicas (famílias onde o homem possui várias mulheres ou vice-versa), casais contemporâneos com relações abertas, famílias monoparentais (com apenas um pai ou uma mãe, em geral fruto de divórcio, morte do cônjuge ou simplesmente “produção independente”). Há ainda adultos de vários sexos que se unem por diversos motivos. Esses grupos recebem a denominação de famílias e organizam-se em torno de motivos religiosos (comunidades religiosas), corporativos (empresas altamente institucionalizadas), criminosos (as máfias) ou sexuais.
A atual concepção ocidental de família tem sua origem no judaísmo antigo, nas antigas leis do Império Romano, no cristianismo primitivo, no catolicismo institucional Romano e nas igrejas da Reforma Protestante. Em resumo, é judaico-cristã. 

 Constituição de uma família de Roma, perante a lei civil.

Em termos antropológicos, um dos primeiros estudos sobre família foi realizado por Lewis Henry Morgan (1818-1881), no livro  Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Morgan também publicou Ancient Society (1877), texto que influenciou o trabalho de Frederich Engels intitulado A origem da família, da propriedade privada e do estado (1884). Esses estudos são considerados obsoletos porém foram pioneiros e Morgan analisou seis diferentes tipos diferenciados de configuração familiar agrupados em: havaiano, sudanês, iroquois, esquimó, crow e omaha.  Os estudos antropológicos também traçaram a linearidade familiar que pode ser estruturada em patrilinear, matrilinear (como os judeus) ou bilateral. 

Freud, Darwin, Max Weber e outros cientistas analisaram as formações familiares com enfoques psicanalíticos, sociológicos, biológicos, culturais ou econômicos. 

Para o ocidente, influenciado pela civilização europeia judaico-cristã, aristotélico-tomista, greco-romana e profundamente racionalista, a concepção de família foi, durante séculos, centrada na figura patriarcal. Desde Roma antiga a figura do pai da família mescla-se com a do proprietário dos escravos, senhor das mulheres e crianças, gestor do patrimônio que lhe pertence, juiz das punições e muitas vezes da vida ou da morte dos transgressores ligados à sua ampla célula familiar. 

 Estrutura patriarcal antiga, incluindo escravos e terras.

O império romano foi sucedido pelo sistema feudal europeu com suas famílias nobres e detentoras do poder civil e religioso, então centralizado na Igreja Católica. O catolicismo romano foi hegemônico até o aparecimento das igrejas reformadas protestantes que mantiveram a estrutura cristã institucionalizada no aparato jurídico-político econômico da nobreza e, posteriormente, da burguesia que se tornou detentora dos meios de produção. Essas práticas foram transplantadas para as colônias europeias e floresceram especialmente nas Américas, tanto nas antigas colônias de povoamento, ao norte, quanto nas colônias de exploração, ao sul. Na Ásia e Oriente Médio, esses modelos convivem cada vez mais com os sistemas filosóficos ou religiosos asiáticos e com as diversas faces do islamismo. Na África persistem vários modelos tribais específicos que são, aos poucos, substituídos pelas regras islâmicas ou cristãs. 

 Família tradicional branca e burguesa, início do século XX

Cada um desses modelos econômicos e culturais possui uma visão particular de família. No caso do ocidente atual, surgiram ao longo dos movimentos pelas liberdades civis (décadas de 1950 e 1960) uma complexa e diversificada movimentação que exigiu direitos iguais aos homens brancos para todas as mulheres, para as outras etnias e para as práticas sexuais diversas da monogamia heterossexual branca e cristã. Nos Estados Unidos a primazia do modelo idealizado WASP (white, anglo-saxon and protestant) foi duramente criticado e as liberdades individuais forjaram, ao longo dos séculos 19 e 20, avanços que foram recentemente (2015) coroados pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos ao aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O feminismo e as grandes movimentações dos negros já tinham conquistado direitos e respeitos aos seus grupos desde meados do século passado. Mas também houve a sobrevivência de grupos fundamentalistas cristãos em várias regiões, especialmente no interior da América do Norte. 

Na América Latina a histórica hegemonia da Igreja Católica foi contrabalançada pelo avanço das liberdades civis laicas, pluralistas e mais democráticas, apesar dos ciclos ditatoriais que diversas vezes assolaram o continente. 

A igreja católica na América Latina possui práticas avançadas caracterizada pela Teologia das Libertação e por uma consciência social mais profunda (no caso dos católicos mais progressistas).

No Brasil, mais recentemente, houve o surgimento das igrejas cristãs neopentecostais que diminuíram um pouco a hegemonia católica. As principais denominações são: 

Igreja Universal do Reino de Deus (fundada por Edir Macedo, 1977); 

Igreja Internacional da Graça de Deus (fundada por Romildo Ribeiro Soares após um desentendimento com Edir Macedo, 1980); 

Renascer em Cristo (fundada por Estevam Hernandes e Sônia Haddad Hernandes, 1986); 

Sara Nossa Terra (fundada por Robson Lemos Rodoalho, 1992); 

Igreja Mundial do Poder de Deus (fundada por Valdomiro Santiago de Oliveira, 1997); 

Bola de Neve Church (fundada pelo surfista Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, oriundo da igreja Renascer, em 2000). 

Essas igrejas são centradas no carisma do fundador e dos pastores, em um sofisticado esquema de marketing e estilo empreendedor, no apelo ao dízimo e às ofertas como fonte de prosperidade e benção (a chamada teologia da prosperidade), na leitura da Bíblia e nos cultos espetaculares, emocionais, histriônicos e envolventes. 

A igreja Católica (dividida em várias ordens religiosas, grupos diocesanos e laicos), as igrejas protestantes tradicionais (Luterana, Calvinista, Anglicana, Batista, Metodista...) e as igrejas protestantes modernas (Adventista, Pentecostal, Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor...) são organizações complexas e multifacetadas. Entre seus fiéis há vários estilos e tipos, desde os mais liberais até os mais conservadores ou reacionários. O problema é que esses se organizam em grupos de pressão e se unem às outras igrejas para defender o  que pensam ser a essência ou a verdade do cristianismo. Assim como os muçulmanos possuem os seus extremistas, os cristãos e judeus igualmente possuem seus fundamentalistas que pregam um discurso muito mais de ódio do que de amor, que é a verdadeira essência do cristianismo. 

O machismo, o racismo e os preconceitos andam juntos nesse contexto de intolerância, ressentimento, hipocrisia e ódio. Seus líderes fundamentam os argumentos em uma interpretação equivocada ou distorcida da Bíblia. Há uma clara presunção farisaica nessas posturas conservadoras. Os fariseus eram os judeus pretensamente mais justos e corretos, rígidos seguidores de leis e regras. Eram os mais criticados por jesus por serem injustos, casuístas, cínicos e impiedosos para com os outros segmentos sociais. 

A modernidade comporta vários tipos de família, inclusive de dois ou mais adultos que não tenham filhos.

O teólogo alemão Hans Kung expõe claramente essa intolerância religiosa que nasce no antigo judaísmo: “Eles (os fariseus) foram os inimigos mais encarniçados de Jesus. Para eles, e não para os grandes pecadores, se aplica a maioria dos discursos condenatórios dos Evangelhos. Não foram os homicidas, os ladrões, os rufiões, os adúlteros, mas os que cultivavam essa moral superior que finalmente assassinaram Jesus, convencidos que dessa forma ainda ofereciam um serviço à Deus. O espírito farisaico se perpetuou. Roma saiu vitoriosa das grandes confrontações militares. O zelotismo naufragou, os essênios foram  exterminados e os saduceus ficaram sem o templo e sem os serviços de culto. O fariseísmo, sem dúvida, sobreviveu à catástrofe do ano 70. Unicamente os escribas ficaram como guias do povo escravizado. Assim, do antigo farisaísmo surgiu o judaísmo normativo mais recente. ... O farisaísmo também persiste, e às vezes com maior intensidade, dentro do cristianismo, naturalmente em crassa contradição com Jesus. “ (Jesus., Hans Kung. Madrid: ed, Trotta, 2014, p. 71).

Nossas sociedades são separadas das igrejas. Somos nações laicas, pluralistas e democráticas, baseadas em constituições nacionais escritas com certa participação dos diversos segmentos sociais. O problema é que esses grupos evangélicos organizaram-se em partidos políticos que representam o que possuem de mais conservador e fundamentalista (em termos religiosos) e partiram para atacar a sociedade como um todo.

 Família branca brasileira e seus escravos, um modelo que marcou de maneira nefasta o imaginário de senhores e subalternos

Eles têm o direito, como qualquer outro grupo, de se organizar e buscar representatividade nas esferas jurídicas e políticas. Porém não tem o direito de querer impor aos outros as suas práticas, dogmas, preconceitos ou neuroses comportamentais. Esses grupos não podem ir contra avanços sociais, culturais, políticos e econômicos que são fruto de práticas democráticas e participativas. Não podem anular as conquistas por liberdades individuais e direitos humanos que venceram séculos de opressão contra as mulheres; não podem mais reprimir outras etnias e religiões; não podem mais massacrar outros estilos sexuais que fogem à ditadura cultural (não é natural e nem divina) e comportamental que se manteve até meados do século 20, alicerçada nos desejos e repressões das classes dominantes brancas, cristãs e heterossexuais, as novas faces da classe farisaica que perdurou ao longo dos milênios. As liberdades coletivas estão em perigo por causa de grupos totalitários, manipulados por líderes muitas vezes envolvidos em escândalos financeiros ou sexuais (justo eles que pregam o moralismo mais restrito, algo típico de fariseus). Suas massas são fanáticas e obcecadas por fórmulas simples de comportamento, regras e costumes, por disciplina e castigo contra os que não pensam da mesma forma. 

 Família

Essas são as origens perversas da intolerância e do ódio que surgiu no Brasil ao longo dos últimos anos. Esse ódio se alimenta da ignorância, da baixa escolaridade e dos níveis culturais pobres, ditados por uma mídia irresponsável. Essa mídia venal se interessa meramente em potencializar seus lucros não se importando com conteúdos e métodos destinados a suprir sua ganância de poder, dinheiro e fama. Escolas medíocres e igrejas ricas; cultura empobrecida e mídia dominante bilionária; práticas violentas e cinismo edulcorado; palavras de ordem totalitárias e pouquíssima reflexão crítica. Assim se constrói o deserto espinhoso e repleto de criaturas peçonhentas que povoam as nossas sociedades hodiernas, seja no mundo real ou no mundo virtual. 

 Família

Os ataques às famílias de diversas configurações, as mentiras e preconceitos contra opções sexuais que fogem à heterossexualidade pretensamente dominante e as repressões à outras religiões e culturas são a mesma face nefasta de uma tentativa ditatorial arcaica de controlar a sociedade visando mais poder, lucros e dominação cultural. O que oferecem é uma fórmula gasta e parcial de um pretensamente único modelo familiar e social, um modelo que foi denunciado por vários cientistas sociais e artistas, basta lembrar as crônicas de Nelson Rodrigues onde são mostradas algumas das características atávicas e paradoxais da família tradicional brasileira ( e universal). 

Família é algo bom quando é livremente escolhida, criada, educada e preparada para um mundo vasto e alucinado. Família é algo mais que um homem, uma mulher e uma (ou várias) criança. Família tem muito mais a ver com amor do que com regras, preceitos e exclusões.  

Família

A santidade das diversas configurações familiares não está no discurso interesseiro dessas igrejas e no sua prática dogmática e obscura. Nossa proteção familiar está no exercício cotidiano do amor, compreensão e tolerância, assim como na luta corajosa e generosa pelas liberdades individuais e democráticas. Qualquer instituição, empresa, igreja, grupo ou família que compartilhar das visões de liberdade e generosidade são bem-vindas para compartilhar das graças que o ser humanos pode proporcionar aos seus semelhantes. 

 O amor não tem raça, nacionalidade, religião, preferência sexual ou ...

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Cenários do turismo brasileiro

Postado por:
Luiz Gonzaga Godoi Trigo (EACH-USP)
Alexandre Panosso Netto (EACH-USP)
Lançamos, em 2009, o livro Cenários do turismo brasileiro (Editora Aleph, 214 páginas). São sete capítulos que abrangem questões da globalização, discussões sociais e históricas, uma análise da crise aérea brasileira (2006-2009), uma crítica sobre a regulamentação das profissões e temas mais teóricos, tais como segmentação de lazer e turismo e epistemologia do turismo.
Cenários do Turismo Brasileiro. CAPA.
Os capítulos são iniciados com pequenas histórias intituladas “Cenas da vida turística”, algumas fictícias, outras verdadeiras. São diversas situações que exemplificam temas do mercado e da prática do turismo e têm como propósito criar consciência crítica e exemplificar os conceitos e ideias apresentadas.

Após seis anos de seu lançamento, o livro está com edição esgotada. Como estamos produzindo textos com outras temáticas e enfoques, não atualizaremos o texto para outra edição, mas pensamos que esse material não pode ser simplesmente descartado. Uma ótima opção é oferecê-lo de forma gratuita, afinal o acesso livre é uma das possiblidades e desejos do mundo virtual.

Quem quiser pode baixar a versão PDF do livro no link: LIVRO -Cenários do Turismo Brasileiro - PDF.pdf 


quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Qualidade em serviços - História, conceitos e reflexões (9/9)




Texto: Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 2015


Cronograma resumido das principais contribuições à evolução da qualidade no mundo (Estados Unidos, Japão e Europa), até 2000:

1918 – Inspeção industrial (EUA).

1920 – Apontamentos de W. Shewhart (EUA).

1930 – Inicia-se o controle estatístico na Bell Telephone Co., influenciado por Shewhart (EUA).

1945 – Constituição da SIC - Sociedade de Engenheiros da Qualidade (EUA) e início dos processos de inspeção (Japão).

1946 – A SIC passa a ser ASQC – Associação Americana Para o Controle de Qualidade (EUA). Constituição da JUSE – União Japonesa de Cientistas e Engenheiros.

1950 – A JUSE convida Deming para aplicar seu primeiro seminário sobre controle de qualidade no Japão.

1951 – Juran escreve, nos EUA, a primeira edição do Manual de Controle de Qualidade, institui os conceitos de economia da qualidade e qualidade no desenho (ou projeto). No Japão começam os procedimentos do Prêmio Deming.

1954 – Juran dirige seminários pra executivos no Japão, sobre planejamento e estabelecimento de objetivos e metas para a melhoria da qualidade.

1956 – Feigenbaum propõe o Controle Total de Qualidade (TQM) e, juntamente com Juran, fala da Engenharia do Controle de Qualidade, nos EUA. No Japão, acontece a integração do Sistema de Qualidade de Feigenbaum, quase simultaneamente aos EUA.

1960 – No Japão, encarregados de empresas são treinados nas técnicas de qualidade.

1961 – Origina-se o conceito de zero defeito na Cia. Martín, desenvolvido por Philip B. Crosby. Os dirigentes promovem o desejo constante e consciente de fazer o trabalho bem feito na primeira vez (EUA). Fundada na Espanha a Asociación Española para la Calidad (AEC).

1962 – Todos os operários japoneses são treinados nas técnicas de qualidade. Empresas, governos e universidades promovem a qualidade. Começam os círculos de qualidade. (Japão).

1970 - A JUSE, os sistemas de prêmio Deming e o governo estimulam a inovação e desenvolvimento da qualidade nacional japonesa. Como resultado nasce o movimento de Controle Total da Qualidade (TQC) e o Controle da Qualidade em toda a Empresa.

1974 – Os primeiros círculos de qualidade são implantados na Lockeed (EUA).

1975 – O TQC se estende aos desenhos e projetos japoneses. O QFD (Posicionamento na Função de Qualidade) expande-se pelo Japão.

1978 – Os círculos de qualidade são implantados na Rolls Royce britânica.

1980 - A alta direção das empresas norte-americanas começa a se interessar pela qualidade como tema estratégico: 3M, Westinghouse, HP etc. A indústria norte-americana, confrontada com o desenvolvimento da indústria japonesa, lança o slogan: Se o Japão pode, também podemos.

1980 – No Japão são implantados o sistema de produção on time e o istema Taguchi de desenhos de experimentos. No final da década os métodos Taguchi e QFD são incorporados às empresas.

1987 – Surge, nos EUA, a primeira versão das normas sobre sistemas de qualidade ISSO-9000. É instituído o Malcolm Bridge Quality Award, prêmio norte-americano de qualidade.

1988 – Assinada a carta da Fundação Européia para Gestão da Qualidade (EFQM).

1989 – Começa, em 19 de outubro, o Movimento Europeu para a Gestão da Qualidade.

1990 – Masao Kogure introduz, no Japão, o Controle da Qualidade Total para a Gestão Estratégica (AMTQC).

1992 – O prêmio Europeu para a Qualidade da EFQM é concedido pela primeira vez.

1994 – Primeira revisão das normas sobre sistemas de qualidade ISO-9000, nos EUA.

1995 – Na Europa o tratamento de qualidade estende-se aos setores de serviços, centros de saúde e educação superior. Surge na Espanha o Plan Nacional de Evaluación de la Calidad de las Universidades (PNECU)

1997 – Modelo de EFQM para PYME (pequenas e médias empresas) da União Européia.

1999 – Revisão do modelo EFQM europeu para modelo EFQM de Excelência.

2000 – Tendência, na América do Norte e Europa, rumo a um sistema integrado de gestão que agrupe qualidade, meio ambiente e prevenção de riscos no trabalho. A integração deve levar em conta os modelos TQM (norte-americano) e EFQM (europeu). Na América do Norte é feita a segunda revisão das normas sobre sistema de qualidade ISO 9000.

Fonte: Velasco, C. A. B. e GARCÍA, C. Q. 2003, p. 130 e 131.

 
A partir do século 21 cada vez mais novas tecnologias de informação e comunicação envolvem e incrementam os processos de qualidade.

X - O esgotamento do fordismo e o surgimento das sociedades de serviços (conceitos básicos para reflexão)

O fordismo, uma das primeiras grandes aplicações industriais do taylorismo, se estabeleceu ao longo de quase meio século por meio de uma série de decisões tomadas em vários níveis (individuais, corporativos, institucionais ou estatais). Foram escolhas políticas e respostas às crises do capitalismo, especialmente à Grande Depressão dos anos 1930. Após o final da segunda guerra mundial, em 1945, o fordismo chegou à maturidade como regime de acumulação plenamente acabado, formando a base de um longo período de expansão econômica industrial desde 1945 até o início da década de 1970. Durante esse período os padrões de vida se elevaram nos países capitalistas desenvolvidos, as tendências de crises foram contidas, a democracia de massa foi garantida e as ameaças de guerras entre os países capitalistas tornaram-se remotas, apesar da ameaça da Guerra Fria entre os países capitalistas e socialistas (1947-1991). Foi durante essa época que floresceu o American Way of Life, tão reproduzido nas artes disseminadas pela mídia, como nos desenhos de Norman Rockwell, nas telas do artista Andy Warhol, pela indústria cinematográfica de Hollywood ou pela publicidade tornada global, levando os símbolos do capitalismo norte-americano à Europa Ocidental, ao Japão e ao sudeste asiático, à Oceania e à América Latina.

Quais as marcas clássicas do capitalismo norte-americano industrial que você se lembra?










O fordismo aliou-se ao keynesianismo (doutrina econômica de Keynes) e juntamente, com o capitalismo, expandiu-se pelo mundo todo. O fordismo desenvolveu-se lentamente fora dos Estados Unidos antes de 1939. Após a década de 1940, foi implantado com mais intensidade na Europa e no Japão, como resultado do esforço de guerra e da vitória norte-americana. A sua expansão após a Segunda Guerra consolidou-se pelas políticas de ocupação dos EUA, pelo Plano Marshall (plano de ajuda aos países europeus devastados pela guerra) e pelos investimentos diretos norte-americanos que se seguiram. O fato é que os Estados Unidos foi o líder ocidental a sair vitorioso e fortalecido da segunda Guerra. Seu grande opositor, a ex-União Soviética (1917-1991), tinha problemas a resolver em sua área de influência direta na Europa Oriental e Ásia Central e na exportação da revolução para a África e América Latina, sem contar que a planificação socialista comprometeu o desenvolvimento pleno da tecnologia e ciência em todos os níveis da sociedade soviética. Aos médio e longo prazo o abismo tecnológico entre ambos os países cresceu imensamente, com plena vantagem para os EUA e o ocidente. O modelo de industrialização capitalista fordista parecia ser a fórmula perfeita de desenvolvimento permanente.
  
Caso: O National Museum of American History (Museu Nacional da História Americana), um dos imensos museus da Smithsonian Institution de Washington D.C. (EUA), mostra com farta documentação fotográfica, esquemática, maquetes, filmes e peças da época, a estruturação dos grande sistemas organizacionais americanos. O museu mostra como as grandes burocracias privadas e públicas, as redes de telégrafo, de energia elétrica e de estradas de ferro do início do século se organizaram. Outro museu Smithsonian imperdível é o Arts and Industries Building, com partes da exposição comemorativa do centenário da independência norte-americana de 1876, inclusive a produção industrial. O site da Smithsonian Institution é www.si.edu e do Museu Nacional de História Americana é www.americanhistory.si.edu



Mas o fordismo não solucionou todos os problemas. Havia uma diferença entre o que ele representava e o que realmente oferecia às pessoas. Havia os excluídos do sistema que se perpetuavam nos países em desenvolvimento e até mesmo nos países mais desenvolvidos. Gente que não conseguia as benesses propagadas pela televisão, pelo rádio e pelo cinema. As críticas e práticas da chamada contracultura da década de 1960 eram paralelas aos movimentos das minorias excluídas e às críticas da racionalidade burocrática impessoal e fria. As várias correntes de oposição começaram a se fundir no mesmo momento em que o fordismo, como sistema econômico, parecia mais fortalecido. Além da oposição iniciada nos países centrais do capitalismo, havia as críticas na periferia do sistema. Países pobres, onde as promessas de desenvolvimento, satisfação das necessidades e integração aos países ricos nunca se cumpriam e na prática esse modelo provocava destruição das culturas locais e opressão, em troca de poucos benefícios destinados apenas às corruptas elites locais que colaboravam com as multinacionais e com os métodos de gestão importados. Os progressos garantidos a todos não eram harmoniosamente distribuídos e criavam laços problemáticos de dependência.

Começaram então a surgir movimentos de libertação nacional, de caráter nacionalista ou socialista, e a hegemonia dos Estados Unidos foi contestada por vários grupos, desde o Movimento dos Países Não-Alinhados (seja ao capitalismo ou ao socialismo) até alguns setores da Organização das Nações Unidas, especialmente ligados à cultura (Unesco), alimentação (FAO e trabalho (OIT). Evidentemente os países do socialismo real (ex-União Soviética, leste europeu, China, Coréia do Norte) eram as grandes forças de contraposição ao capitalismo ocidental liderado pelos EUA.

Os problemas não eram apenas políticos. A face política e cultural desses conflitos tinha origem em raízes econômicas. Políticas de substituição de importações na América Latina geraram pólos industriais, a Europa ocidental e o Japão desenvolviam suas indústrias e todos passaram a competir com os norte-americanos em ambientes totalmente novos. “De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades podem ser mais bem apreendidas por uma palavra: rigidez. Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumos invariantes” (Harvey 1993, pág. 135).

Essa rigidez é uma característica do capitalismo industrial que será duramente criticada por diversos analistas. Rigidez refere-se à disciplina rígida, hierarquizada, quase militar que prevalecia nas indústrias e em alguns antigos setores de serviços como bancos, hotéis, escolas, transportes ferroviários e marítimos. A conquista de qualidade em serviços nas sociedades pós-industriais teve que combater duramente essas antigas práticas gerenciais e administrativas para possibilitar o avanço nos parâmetros de qualidade .

Para complicar o quadro internacional, em 1973 a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) aumentou os preços do óleo e embargou a exportação do produto durante a guerra árabe-israelense. Com um número considderável de países islâmicos na Opep, o embargo e o aumento dos preços do petróleo foi uma retaliação pelo apoio que vários países ocidentais (liderados pelos EUA) deram a Israel. O aumento causou a elevação do custo dos insumos de energia e vários problemas financeiros no mercado internacional, principalmente uma instabilidade econômica preocupante. Em 1975, a cidade de Nova Iorque, dona de um dos maiores orçamentos políticos do mundo, atingia a falência técnica, exemplificando a gravidade dos problemas mundiais.

A recessão de 1973, aprofundada pelo choque do petróleo, catalisou uma série de movimentos que comprometeram o fordismo. Ao mesmo tempo surgiam os avanços tecnológicos nas áreas de eletrônica, telecomunicações e informática que dariam o golpe final nos antigos processos industriais e administrativos existentes.

As décadas de 1970 e 1980 foram períodos turbulentos de reacomodação social e política, econômica e cultural. Novas formações econômicas começaram a surgir, fruto das incertezas e dos conflitos mal resolvidos em um mundo que se transformava profundamente.

Essas mudanças fortaleceram o setor terciário, de comércio e serviços. As novas tecnologias propiciaram esse desenvolvimento e, concomitantemente, racionalizavam e criavam novas linhas de produção automatizadas no setor industrial.

Foi a época do aparecimento dos robôs nas indústrias, da disseminação de computadores cada vez menores, mais rápidos e baratos, da explosão dos chips e de novas linguagens de comunicação.

Em termos mais técnicos, o eixo principal das mudanças ocorridas nas últimas décadas do século XX foi a superação do fordismo em virtude do surgimento da chamada acumulação flexível:

A acumulação flexível é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, por novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, não só um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’, mas também conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas. Ela também envolve um novo movimento de compressão do espaço-tempo no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões pública e privada se estreitaram, ao passo que a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo.” (Harvey 1993, pág. 140).

Horizontes mais amplos, tecnologias mais sofisticadas, comunicações mais rápidas e baratas, novas possibilidades de acesso.  Essas são as sementes da globalização que transformou completamente o mundo entre o final do século XX e o início do século XXI.


Essas sociedades pós-industriais possuem, portanto, um eixo caracterizado por termos como informação e conhecimento, palavras encontradas na maioria dos analistas e pesquisadores sobre as novas sociedades. Os serviços são então marcados por essas qualidades. Para não deixar dúvida sobre o que se está analisando sob o setor de informação para serviços, Charles Handy faz uma lista:

Educação                              
Artes criativas e arquitetura  
Pesquisa
Trabalhos em escritórios        
Música                                              
Design
Serviço público                     
Processamento de dados       
Mídia
Comunicações                                   
Software                               
Vendas
Filmes                                    
Contabilidade                       
Igrejas
Direito                                   
Fotografia                             
Imóveis
Psicologia e Psiquiatria         
Telecomunicações e Correio 
Publicidade
Trabalho social                      
Editoração                             
Finanças
Ciência                                  
Administração                                  
Gerenciamento
Sindicatos                             
Museus e TV                         
Setor gráfico
Governo (legislativo e executivo)

Fonte: Handy, C. 1990, p. 15-16

Essas divisões e agrupamentos variam de acordo com os autores que analisam o mundo atual e a globalização.

As sociedades agrárias trabalhavam com commodities, produtos armazenáveis que significavam riquezas palpáveis, mais ou menos perecíveis (cereais, frutas, tecidos, minerais, gado, óleo mineral e vegetal etc.). As sociedades de economia industrial trabalhavam com bens, produtos manufaturados e duráveis, com valor agregado às matérias primas e insumos, permeados pelo trabalho humano, a preciosa mais-valia de Karl Marx. As sociedades se serviços trabalham com os próprios serviços e as sociedades da experiência trabalham com sensações, na visão de Gilmore e Pine. Em um patamar mais exigente, essas sensações devem ser um espetáculo para o cliente, mas um espetáculo com certa autenticidade.

Ao longo dessa vertente as antigas economias, ou sociedades, não desaparecem. Incorporam-se aos novos patamares. Continuamos a precisar de suprimentos e bens, mas a tecnologia e os processos gerenciais desenvolvidos ao longo dos séculos já nos garantem essa riqueza material em escala suficiente. O que existe é uma má distribuição dessas riquezas pelo mundo, aliada a uma concentração brutal de riquezas e renda nas mãos de minorias estabelecidas nos países desenvolvidos e, em menor escala, nos países em desenvolvimento. Continuamos a necessitar de qualidade, seja no mundo agrário, industrial ou de serviços. E essa hipotética sociedade da experiência igualmente fundamenta-se em commodities, nos bens e serviços, pois as sensações não vêem do nada, não são puramente subjetivas ou imateriais. A qualidade continua a permear essas novas formações sociais. Do futuro e do passado. Prover ou providenciar uma matéria-prima, um bem, um serviço ou uma experiência com altos níveis de excelência depende de qualidade.


No futuro, a bordo das naves ou estações espaciais, seja em órbita da Terra ou atravessando o sistema solar rumo a “novos mundos, novas vidas”, ainda haverá commodities, bens, serviços e experiências a bordo. Assim como padrões de qualidade, pois as naves pioneiras não terão assistência técnica de reparo ou manutenção logo depois do cinturão de asteroides, entre as primeiras luas de Júpiter. Pelo menos no início das viagens espaciais de longo alcance. Portanto, o desafio de se conseguir – e manter – elevados padrões de qualidade é um projeto de longo alcance para a humanidade. Um desafio do presente e do futuro, para os próximos séculos.

Mas o desafio é fazer isso aqui e agora, em pleno século 21. Cada vez melhor e com mais economia, racionalidade e excelência. 


Texto: Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 2015